Pelotas, cidade de cultura e contradições, fez do skate uma expressão urbana e educativa. Da lendária SUB aos projetos da UFPel e ABC do Skate, formou gerações, talentos e um legado que une esporte, arte e transformação social.
Pelotas, entre o porto e os pampas; entre a pompa e o brilho; entre a arte e o charque; entre a educação europeia — com teatros, cinemas, faculdades e universidades — e a distância dos grandes centros, é mais que um ponto geográfico no extremo sul do Brasil: é um território de ideias e ideais, uma paisagem essencialmente humana em constante reinvenção.
Conhecida por sua diversidade de apelidos — Princesa do Sul, Satolep, Cidade do Doce, Twin Peaks Brasileira — é berço de contradições criativas e pulsões culturais que atravessam séculos. A cidade que outrora comandava a economia do charque e protagonizava os salões do Império, causando inveja e encantamento — da alta gastronomia à moda, da Companhia Hidráulica à pujante Santa Casa de Misericórdia — afirmava-se já então como um dos maiores centros hospitalares não só do país, mas das Américas e do mundo.
E foi também esse solo que recebeu o skate como linguagem, paixão e cultura, construindo um capítulo singular na história da cultura urbana brasileira.
Com topografia plana, herança arquitetônica majestosa e espaços públicos significativos, Pelotas reunia, já no século XIX, os elementos que a tornariam um centro de efervescência cultural. A Biblioteca Pública, os teatros Guarany e Sete de Abril, o lendário Mercado Central, as avenidas largas e arborizadas, os clubes, as escolas, a Companhia Hidráulica e a Santa Casa compunham uma cidade pronta para dialogar com o mundo — e para criar sua própria linguagem.
A malha urbana de traçado hipodâmico — referência à planta de Alexandria, inspirada por Hipódamo de Mileto — favorecia a circulação, os encontros e a apropriação dos espaços. Foi assim que, décadas mais tarde, essas calçadas largas, lombas convidativas e praças com chafarizes se tornaram, espontaneamente, pistas improvisadas de skate.
Uma cidade que se fez playground — não apenas pela geografia, mas pela mentalidade de sua gente.
Se, nos idos anos do Império, Pelotas figurava entre as mais cosmopolitas da América do Sul, foi com a construção de uma das maiores pistas de skate do mundo, no governo do então prefeito Irajá Andara Rodrigues, em 1980, que ela reencontraria esse espírito vanguardista por meio do skateboard.
Cidade universitária, com suas diversas faculdades e institutos — entre eles a histórica UFPel — Pelotas tornou-se também uma cidade-escola do skate.
Os nomes que emergiram dessa geografia humana — Kennedy e Schaun, Leoa e Paulinho, Alzie, Fredi e Michel, Mamão, Mania e Duda, Daniel Bob e Rogerinho, Tatinha e Mai, Mariano e Tuco — os skatistas profissionais da cidade em 2025, entre tantas outras figuras históricas e folclóricas — são patrimônio imaterial de uma história viva, que nasce e renasce, apesar dos desafios que se impõem sobre tamanha tradição e humanidade.
Das ruas em que as rodas rolaram. Dos dias em que o improviso virou arte. Da cultura que nasceu do encontro entre juventude e espaço público.
É neste solo que se ergueram pistas como a eterna SUB, a 1ª Mini do Schaun, a Quebra-Mar, o JLCasarin Skate Park, o Movimento Skatepark e o BowlMania, no Marina Ilha Verde. Todas elas são parte de um desenho maior: o mapa emocional de uma cidade que respira cultura sobre quatro rodas — às vezes respirando por aparelhos, mas sem jamais perder o seu DNA skateboard.
Começou antes de 1980, no improviso das ruas menos ásperas, onde cada declive era uma promessa de liberdade.
Os primeiros skates surgiram trazidos por pais que viajavam ao exterior e, sem saber, semearam uma revolução cultural.
Eram tempos sem pistas, sem referência, sem mídia especializada — mas já havia desejo, fascínio e experimentação. Bastava um chão liso e um pouco de coragem para transformar a cidade em playground.
Ainda no final dos anos 1970, Pelotas assistiu ao nascimento silencioso do skate como prática urbana, antes mesmo de sua consolidação nacional. E foi exatamente nesse momento inaugural que o prefeito Irajá Andara Rodrigues ousou acreditar no improvável. Inspirado pelo que via nas ruas, projetou e construiu uma das maiores pistas de skate do mundo: a lendária SUB.
Quarenta anos depois, sua decisão visionária se prova histórica: o skate estreou como modalidade olímpica em Tóquio 2021, reconhecido por sua potência cultural, esportiva e social.
A SUB não era apenas uma pista — era um ponto de inflexão cultural, um templo a céu aberto, onde Pelotas se tornava protagonista de uma história que ainda engatinhava no Brasil.
Erguida em concreto armado, elevada a dois metros do solo e cercada por uma praça histórica, ao lado do Estádio da Boca do Lobo, a SUB foi, por anos, um dos maiores e mais completos complexos de skate do mundo.
Localizada junto ao Mini Zoo da famosa Praça dos Macacos, sua escadaria servia de arquibancada. A pista começava suave para iniciantes, em formato de snake, progredindo até paredes altas e curvas em “S”, integrando-se ao banks, à parte rasa e ao fundo, onde as sessões pegavam fogo.
O bowl tinha na sua entrada um half-pipe oververt insano, culminando em um “panelão” com quase 2,8 metros de altura e ângulo de 90°, finalizado com coping block de concreto — inovação inspirada nas piscinas californianas.
Ali se aprendia e se arriscava. Crianças de 10 a 12 anos conviviam com jovens mais experientes, todos envolvidos num rito coletivo em que o skate era mais do que manobra: era pertencimento, expressão e sobrevivência.
Foi na SUB que surgiram os primeiros instrutores espontâneos — como Leoa, sempre pronto a ensinar o primeiro embalo, mesmo sem jamais ter dropado. Paulinho, figura constante e carismática, era presença indispensável — tanto nas sessões quanto nas histórias que se tornaram lenda.
Histórias brotam de cada canto da pista. Rochinha, designer de shapes que mais tarde ajudaria grandes marcas nacionais, tentou seu primeiro drop na SUB, incentivado por Carapa — que fugia da aula de datilografia. O tombo foi histórico.
A SUB era mais que pista. Era laboratório, escola, centro de formação cidadã. Misturava grafite, música, estilo, linguagem e visão de mundo. Foi o ponto de partida do que hoje chamamos de cultura skateboard — um espaço coletivo que educava, protegia, desafiava e celebrava.
Hoje, embora fisicamente desaparecida, a SUB vive na memória e na pulsação cultural da cidade. Seu legado ecoa nas novas pistas, nas metodologias de ensino, nos livros e projetos que emergiram a partir dela — e, principalmente, na certeza de que Pelotas foi, é e continuará sendo um dos berços mais fecundos do skate brasileiro.
O skate de Pelotas não se escreve em linha reta. Ele se curva, se adapta, ganha velocidade e recomeça — como uma manobra bem executada.
Nos anos 70 e 80, desbravadores como Schlee, Kennedy, Luiz Schaun, Ricardo Pretz, Miguel, Marcinho e Leoa abriram caminho numa época em que o skate era marginal, desconhecido e até proibido.
Na virada dos anos 80 para os 90, surgiu outra geração abnegada — ainda sem estrutura, mas já com revistas, referências e ousadia. Alzie, Fredi, Michel, Mamão, Carapinha, Mania, Duda, Rocha, Mauricio, Alex, Paulinho, Rômulo, Monguinha…
A geração dos anos 90 e 2000 viu a velha SUB ser demolida. Vieram as pistas das Fenadoce, espaços de resistência e renascimento. Rogerinho, Piolho, Daniel Bob, Tatinha, Marcel Velleda, Maneca — todos cresceram entre transições de pista e de tempo.
Essa geração manteve viva a ponte quando quase tudo havia acabado — lutando contra o preconceito, a exclusão e a falta de reconhecimento. Da resistência emergiu a Educação Integrativa e, com ela, a Metodologia A — embrião da ABC do Skate Brasil.
A partir do desejo de transformar o skate em ferramenta educativa, nasceu um dos projetos mais inovadores da cultura skate mundial: a ABC do Skate.
Criada por Frederico Manica (Fredi) em 1997, como Metodologia A, a proposta estruturou o ensino do skate com base em valores de inclusão, cidadania, criatividade e excelência.
Em 1999, a Sogipa (Sociedade Ginástica de Porto Alegre) implantou a primeira Escola de Skate baseada na metodologia, com equipe de instrutores, aulas para alunos especiais e pistas de iniciação e competição.
Com apoio de professores da UFPel, como Gomes Tubino, Fides Leal Manica e Walter Spiecker, o projeto expandiu-se para escolas, ONGs e redes públicas de ensino.
Décadas depois, essa trajetória culmina no ABC do Skate UFPel (2024), coordenado pelo professor César Vaghetti, reafirmando o compromisso de Pelotas com a educação inovadora e o skate como linguagem cultural.
Mais do que um método, o ABC do Skate é um movimento — um pacto entre gerações, pistas, escolas e comunidades, para que o skate seja o que sempre foi: expressão livre, cultura urbana e ferramenta de transformação social.
A UFPel, como instituição pública e plural, sempre dialogou com as expressões populares da cidade — e com o skate não foi diferente.
Desde as primeiras aproximações com a Metodologia A, professores da universidade — entre eles Fides Leal Manica e Walter Spiecker — reconheceram o valor cultural, social e pedagógico da prática skateboard.
Em 2024, o professor César Vaghetti estruturou o programa ABC do Skate UFPel, integrando formação e extensão universitária.
A universidade torna-se, assim, coautora de um projeto nacional que reconhece o skate como campo legítimo de ensino, pesquisa e intervenção comunitária.
Em Pelotas, o saber acadêmico não paira sobre as pistas — ele anda junto, dropa junto, escuta junto.
O tempo mostrou que Pelotas não apenas formou skatistas — formou protagonistas.
Hoje, ao lado da tradição e da memória, brilha o futuro: um futuro com nome, manobra e propósito.
Mariano Nunes, skatista de street, tornou-se profissional em 2023 e desponta como um dos maiores talentos do sul do país.
Tuco Manica, destaque do park e bowl, conquistou o profissionalismo em 2025, aos 15 anos, consolidando a presença pelotense nos pódios nacionais.
O presente pulsa também nos jovens talentos que hoje ocupam as pistas — como Davi Paz Oliveira, que representará Pelotas e o tradicional Parque Tênis Clube no Campeonato Brasileiro de Skate 2025.
Um futuro sólido e promissor se constrói com integração: o skate dialoga com o tênis, a ginástica e a universidade.
Práticas esportivas e artísticas se entrelaçam num ecossistema onde o corpo é linguagem e o movimento é cultura.
O que antes era brinquedo estrangeiro, depois rebeldia marginal, hoje é política pública, objeto de estudo, projeto educativo e orgulho coletivo.
Pelotas não deve ao mundo — oferece ao mundo.
E o skate é uma de suas mais belas assinaturas sobre o tempo.