Sergipe fez do skate uma escola de vida — das ruas aos projetos da ABC do Skate, unindo esporte, cultura e transformação social.
Sinto o calor escaldante do sol na pele, a secura no ar irritando a garganta, o pó suspenso que invade o peito — é o preço de estar na rua.
O som do atrito das rodas no asfalto, o clack da madeira, o cheiro do concreto quente misturado ao suor — tudo isso é linguagem.
A lixa que gruda no tênis e corta a pele é minha professora áspera. Ensina-me o equilíbrio pelo desconforto, a precisão pela dor.
Cada queda é uma conversa com o chão, e cada ferida é uma assinatura no livro da permanência.
A lixa não apenas segura meus pés; ela costura, com dor, minha história ao skate.
Toda lixa é uma cicatriz.
E toda cicatriz, uma prova de que houve queda e permanência.
Desistir? Jamais.
O nosso skate — que também é de todos vocês — se é skate, não tem dono.
Mas vou chamar de o skate daqui: o que nasceu entre praças e avenidas que o tempo quase apagou — Tobias Barreto, Camerindo, Ivo do Prado, o calçadão da 13 de Julho, a Sementeira e os Cajueiros.
Enquanto os grandes centros já tinham rampas e patrocinadores, nós tínhamos tijolos e tábuas — e uma vontade absurda de continuar.
Mas sempre tivemos a consciência de que, para outros lugares, aqui também pode ser um grande centro — com pistas e oportunidades que muitos sonhariam ter.
Em se tratando de Brasil, existe o interior, do interior, do interior, do interior.
Um tijolo sustentava a tábua. Uma ideia sustentava o movimento. Essa é a realidade.
Lembro de Adelino Negão, Aminthas Nego John, Aécio Fyu, Gibas Dog e tantos outros visionários que, junto comigo, faziam o impossível caber numa esquina.
Sem verba, sem pista, sem visibilidade — mas com fé, com suor e com o rumor das rodas como trilha sonora.
Ali o skate ainda não era esporte.
Era sobrevivência poética.
Chamavam de baderna o que era busca por expressão. Entendeu o Vagabonds?
Diziam que fazíamos barulho, mas era o som de uma geração aprendendo a existir.
O atrito da lixa, o estalo das manobras, o eco das praças — tudo isso era o grito de quem transformava o concreto em palco.
Vi o olhar de desconfiança virar curiosidade, e depois respeito.
Vi prefeituras que antes nos expulsavam começarem a nos chamar para conversar.
Vi escolas abrirem suas quadras, e o skate, antes delinquente, virar ferramenta de inclusão e pedagogia viva.
A lixa é dura, mas justa.
Ensina que, para ganhar o chão, é preciso primeiro se render ao seu atrito.
O mesmo barulho que antes incomodava virou som de cidadania.
Carrego shapes, trucks, rodas e rolamentos por aí como quem carrega argumentos: com convicção e propósito.
Passei por reuniões onde ninguém ouvia, oficinas onde faltava tudo, campeonatos em que só havia vontade — e mesmo assim seguimos.
Acreditei, e ainda acredito, que o skate é mais que um esporte: é um meio de educar, incluir e formar caráter.
Entre uma conversa e outra, entre uma manobra e um conselho, plantei ideias.
E dessas ideias nasceram instrutores, projetos, alunos e amigos.
Muitos entenderam que não bastava colar a lixa no shape — era preciso pregar o skate no mundo.
Sou feito de persistência.
E persistência é o grip que segura o sonho quando o vento é contra.
O que a lixa faz com a pele, a sociedade tenta fazer com a alma.
Mas o skatista aprende: cair não é perder — é aprender o contorno do mundo.
Se na rua levanto para desafiar a gravidade e o concreto, na vida levanto para desafiar o preconceito e o descaso.
As duas quedas doem, mas também curam.
O skate me ensina que a dor é apenas o estágio inicial da consciência.
A adstringência é purificação: o que raspa, revela.
O skate é meu laboratório de vida.
A lixa, meu princípio filosófico.
Ela me diz, sem palavras: o atrito é necessário para que haja aderência.
A lixa depura o medo.
O chão ensina humildade.
O skate cura o invisível.
Mas, no fim, tudo passa pelo próprio instrutor.
Assim como existe a luta pelo skate que praticamos — esse skate real, alternativo ao das vitrines e franquias, embalado em promessas de lucro e glória — também existe uma luta pela formação cultural que nos sustenta.
Sou prova viva desse caminho.
Aprendi que a verdadeira escola é a que nasce do chão e da convivência — onde cada queda é uma aula propositiva, cada conversa é uma aula de inclusão, e cada reencontro é um gesto de acolhimento.
Entendi que a Cultura Integrativa não é um conceito: é uma prática diária de olhar o outro e reconhecer nele o mesmo desejo de crescer.
Sessão após sessão, tombo após tombo, tornamo-nos uma família que se educa, se afia e se ergue junta.
Aos meus orientadores, aos que vieram antes e aos que virão, deixo o que aprendi:
Minha gratidão é a minha atitude,
e minha consciência é a lembrança de que a única covardia definitiva
é não ter coragem de fazer o que é certo.
Desejar para os filhos dos outros o mesmo que desejamos para os nossos — é isso que nos torna instrutores de verdade.
Hoje o skate pulsa.
Temos um núcleo regional, mais pistas e, agora, as escolas.
De Aracaju a Itabaiana, de Estância a Nossa Senhora do Socorro, brotam instrutores, projetos sociais, meninas skatistas, instrutoras, atletas PCD.
O nosso pequeno estado virou um mapa de resistência cultural.
Mas o homem ainda está aprendendo com o skate: o ego, a vaidade, ainda gritam alto.
Em vez de estar conosco colocando a mão na massa, alguns ainda preferem a sessão da intriga e da maledicência.
Mas a roda gira — e logo eles aprenderão com os próprios tombos.
O Núcleo Nordeste da ABC do Skate, os cursos de formação, o projeto Skarte, os intercâmbios, o Dia do Skate, o Dia das Crianças — tudo isso é obra de quem acreditou quando não havia palco, microfone ou patrocínio.
E as coisas começam a acontecer de verdade — eu falo aqui dentro, dentro do meu coração.
Não preciso de celebridades validando o que faço; preciso do reconhecimento dos meus irmãos que vêm lutando comigo há anos — lado a lado, tombo sobre tombo, lição sobre lição.
Sergipe é pequeno no mapa, mas tem lixa de verdade — para ensinar a não desistir.
Esse Brasil dos lugares pequenos, onde tem gente que não desiste, também é arte.
Como diz um dos meus queridos mestres: é arte dentro da arte.
A lixa gasta não é o fim. É o sinal de que o caminho foi percorrido.
Ela guarda o pó das quedas, o sal do suor e o brilho do tempo.
Aprendi que a roda leva o skate adiante pela presença dele — o atrito.
Tudo que conquistei, o que conquistei é o que sei: esse tesouro que coisa nenhuma será capaz de me tirar.
O que aprendo se transforma no que sou — veio da dor transformada em ritmo, e do improviso feito método.
Da experiência, a obra.
Há quem fale de pessoas — nós preferimos fazer a obra que elas gostariam de estar fazendo.
Sigo trabalhando com simplicidade, mesmo quando os holofotes dos grandes eventos se apagam.
Porque a verdadeira vitória é continuar marcando o chão da história, para que outros encontrem aderência onde antes só havia escorregão.
Os netos dos nossos filhos, os netos dos amigos dos nossos amigos — "para comer as tâmaras, alguém tem que plantar as tamareiras." Diria o meu colega Prof. Fredi Manica. Aqui nós dizemos: “Para comer cuscuz, tem que plantar o milho.
Para os festejos juninos, organizar a festa.
E é bom lembrar: plantar no dia de São José.”
— Sabedoria popular nordestina" Fazer. Cair levantar. Fazer. Plantar e Plantar. Fazer. Cair e Levantar....
Estamos plantando. Fazendo. Ainda caímos e nos machucamos, e levantamos.
Aos que também caíram e levantaram, aos que lixaram o solo sagrado nordestino e seguem plantando, aos que transcrevem a memória do skateboard do nordeste e do nosso Brasil, educando, fazendo, semeando — nossa gratidão.
Que a lixa de cada um também seja uma cicatriz.
Uma tatuagem. Uma obra.
Cada cicatriz é uma prova de que houve queda e permanência.
E nós — permanecemos.
Manhã de domingo. Escrevendo, corrigindo, ensinando, estudando e aprendendo. Assinando essa história compartilhada — do nosso skate, da nossa cultura.
Que é de todos vocês. Mesmo de quem ainda não começou a andar de skate.